sexta-feira, fevereiro 23, 2007

sempre

Zeca Afonso (1929-1987)

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

a sopa

Há cerca de 15 dias concretizou-se a mudança de formato do Público. Porque não gosto de tirar conclusões precipitadas, e porque tento combater tanto quanto possível as infundadas resistências à mudança, decidi aguardar. Sobretudo para ver se o novo formato do jornal se entranhava, já que desde o primeiro dia o estranhei.
Mas o esforço foi em vão. Continuo a não lhe encontrar nem graça, nem beleza e muito menos eficácia. O Público transformou-se numa daquelas sopas que, tendo praticamente todos os ingredientes do costume, foi agora passada pela varinha mágica, tornando tudo indiferenciado e com um aspecto generalizado de vómito (mais colorido, é certo, mas com a contrapartida de agravar o aspecto de vómito). Perco tempo à procura de cada um dos legumes que antes encontrava com imensa facilidade e, por mais que tente, não lhe consigo redesenhar o mapa mental que era tão claro até aqui.
Aquele que eu considerava ser único e com uma identidade bem definida, pela qual tinha empatia, tornou-se um jornal vulgar (com a agravante das pequenas coisas imperdoáveis, como a saída de Calvin e Hobbes da última página). Se um bom exemplo fosse necessário, aí está o novo Público para demonstrar que a mudança não é um bem em si mesmo.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

falência técnica

Se for coerente e consequente, o Cónego Tarcísio Alves deverá a breve prazo anunciar a falência técnica dos estabelecimentos que a ICAR possui em Castelo de Vide, devido à quebra compulsiva de fregueses.
Com efeito, ao avisar os seus fiéis que não votando no referendo do passado domingo cometeriam pecado mortal gravíssimo (ficando impedidos de participar na Santa Eucaristia), e tendo garantido a excomunhão a todos quantos votassem “sim” pela despenalização da IVG, restam-lhe neste momento: 242 ovelhas (votantes no “não”) com a lã absolutamente branquinha; cerca de 1900 ovelhas abstencionistas, com o pêlo imundo; e 989 ovelhas (votantes no “sim”) prontinhas para esturricar nas santas brasas da lei. Ansiosas por conhecer a sua sorte, encontram-se ainda 25 ovelhas no limbo dos brancos e nulos, devido à não regulamentação atempada das práticas em que irresponsavelmente se meteram.
Assim, feitas as contas, das 3157 ovelhas recenseadas que constituíam o potencial rebanho paroquial a 10 de Fevereiro, 60% estão em pecado mortal gravíssimo, 31% incorreram em excomunhão imediata e apenas 8% se encontram em pleno estado de graça religiosa e eleitoral.
Para além de decretar a falência técnica da paróquia de Castelo de Vide, espera-se que o Cónego Tarcísio apresente um Plano de Reestruturação e Racionalização da Rede de Igrejas e Capelas (PRRRIC), que reparta as ovelhas sobrantes por estabelecimentos existentes noutros concelhos do distrito de Portalegre, sobretudo aqueles onde as baixas não foram tão relevantes, e que são a maioria dos casos (conforme figura). Em resposta à comunicação social, sobre se afinal não seria esta uma estratégia maquiavélica e secreta de Tarcísio Alves para acabar com a presença da ICAR no concelho, o Cónego escusou-se a responder, enchendo a boca com as tradicionais boleimas de Castelo de Vide.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

portugal social

1. Em qualquer representação cartográfica dos resultados do referendo é clara a transição em favor do “sim” à medida que caminhamos de Norte para Sul do país. Esta transição torna-se ainda mais evidente quando se analisa a intensidade das tendências de voto por concelho, o que permite destacar os casos em que os resultados ultrapassam os 80% a favor da despenalização da IVG, nos termos colocados a plebiscito, e por oposição as situações em que o voto “não” é superior a 25%.
2. A cartografia destas tendências revela dois casos curiosos pelo seu significado: o concelho da Marinha Grande, bastião de esquerda em Leiria e cuja industrialização é indissociável de uma forte mobilização sindical; e o concelho de Ourém, a que pertence a capital lusa do catolicismo, Fátima, onde a pastorícia fez irromper o sobrenatural. Encontrando-se praticamente à mesma latitude, e espaçosamente rodeados por situações com resultados menos extremados, Marinha Grande é o concelho localizado mais a Norte com votação “sim” superior a 80%, e Ourém o concelho mais a Sul com votação “não” superior a 75%.
3. Sobre a importância da Ideologia e da Igreja neste referendo, os exemplos acabados de referir são simbolicamente eloquentes, contrariando todas as teses que defendem que a questão do aborto não é uma questão nem ideológica nem religiosa. Aliás, o retrato do país pós-referendo encarrega-se de o demonstrar com extrema nitidez, associando os concelhos com maior urbanização ao “sim” (ainda que menos extremado na sua expressão), e dividindo o mundo rural entre o “sim” a Sul e o “não” a Norte, num reflexo respectivo do peso da Ideologia e da Igreja.
4. Mas o retrato social que resulta de domingo passado vai muito para além da expressão das posições sobre a despenalização da IVG. Aliás, o que sempre esteve em causa neste referendo foi muito mais profundo do que a questão do aborto e da sua despenalização. A partir do momento em que o argumento da “inviolabilidade da vida humana” se tornou irremediavelmente ferido de contradição (face à aceitação, por parte da maioria dos opositores à despenalização, das excepções consagradas na Lei de 1984, e da sua concordância relativamente à não aplicação da pena de prisão), o que esteve verdadeiramente em causa passou a ser outra questão: a ilegitimidade do Estado para se arrogar do direito de invadir e devassar as vidas e consciências individuais, a mando de uma parte da sociedade que gostaria de impor, pela força do Código Penal, os seus valores morais, éticos e religiosos à sociedade no seu todo.
5. É por esta razão que a vitória do “sim” no domingo passado vai para além da despenalização do aborto nos termos colocados a referendo. É por esta razão que desde o último domingo Portugal conseguiu virar uma página medieval e com semblante teocrático da sua história, dando um passo civilizacional que só peca por tardio. Venceu a dignidade do respeito pela consciência individual, venceu o pluralismo, venceu uma democracia mais verdadeira, aberta e tolerante, que confere a cada pessoa o direito às suas convicções, valores e liberdade. E a luta continua.

sábado, fevereiro 10, 2007

porque hoje é sábado

(Foto de Spencer Platt, que venceu o World Press Photo 2006, na capa do Público de hoje. A imagem escolhida mostra um grupo de libaneses a passear-se em Beirute, num descapotável vermelho no meia da devastação, depois dos bombardeamentos da aviação israelita.)
Neste momento há um casamento ■ Porque hoje é sábado ■ Há um divórcio e um violamento ■ Porque hoje é sábado ■ Há um homem rico que se mata ■ Porque hoje é sábado ■ Há um incesto e uma regata ■ Porque hoje é sábado ■ Há um espectáculo de gala ■ Porque hoje é sábado ■ Há uma mulher que apanha e cala ■ Porque hoje é sábado ■ Há um renovar-se de esperanças ■ Porque hoje é sábado ■ Há uma profunda discordância ■ Porque hoje é sábado ■ (…) ■ Há a perspectiva do domingo ■ Porque hoje é sábado
(Vinicius de Moraes, Poética (I), 1950)

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

o referendo

(Artigo de José Gil, publicado na Visão de 8 de Fevereiro de 2007)

Nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.

É, para mim, evidente que os argumentos utilizados pelos partidários do “sim” são muito mais claros e coerentes do que os dos defensores do “não”. Tudo se condensa no que foi repetindo, ao longo da campanha, Vital Moreira: o “não” significa a defesa e manutenção da lei actual, quer dizer do aborto clandestino com os seus perigos para a saúde e os seus riscos de morte, a criminalização da mulher, a sua humilhação, a intromissão do Estado na consciência íntima da pessoa, a impossibilidade de criar condições de assistência médica e psicológica à mulher que aborta, etc.
A defesa do status quo é a defesa de uma cultura de morte, com laivos de autoritarismo político; deseja-se a continuação de uma lei que promove mentalidades submissas, a clandestinidade, o juízo moral e social mais retrógrado (a “mulher devassa” e “criminosa”), a culpabilidade e a vergonha. Mais: uma lei que, longe de induzir melhores condições para a liberdade de escolha, conduz à própria interiorização forçada e perversa. Uma lei fundamentalista, característica de um Estado teocrático. Vivemos, neste campo, em regime de crueldade arcaica.
Os argumentos do “não” concentram-se num ponto: a questão referendada não se referiria à “despenalização” mas à “liberalização” do aborto. De onde, é-se ou não pelo direito à vida? O feto não é vida em crescimento, um ser humano em potência? O aborto é, pois, um crime, e o “sim” equivaleria a uma “matança dos inocentes”. Passa-se, com um salto, do nível penal para o nível moral-metafísico a partir do qual se julga o valor jurídico da acção. É o que se chama um sofisma.
Curiosamente, as contradições implícitas no sofisma não incomodam os apoiantes do “não” (por exemplo, aceitam a lei actual que admite o aborto em casos de violação: não se mata também uma vida humana? Então porque é que a aceitam?). A argumentação pelos direitos da vida transforma a lei jurídica em lei moral e, esta, em lei divina. Tornam o “por ou contra” a despenalização do aborto em “por ou contra” a vida humana. Ora nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
O “sim” é claro e tolerante, o “não” impositivo e intolerante. Contra um argumento central dos partidários do “sim” (que a opção de abortar depende da consciência da mulher), o “não” afirma que a mulher ou a jovem é influenciada por terceiros. A ideia de que a mulher pode escolher livremente, é uma ilusão. Pelo contrário, há, nos defensores do “não”, a convicção subliminar de que toda a mulher quer, ontologicamente, por uma espécie de essência da feminilidade, inscrita nos genes, ter filhos sempre. Ou seja, que a recusa de os ter – como no acto de abortar – é contranatura, e só pode provir de uma pressão exterior. Ideia que funda a recusa em despenalizar o aborto. A harmonia entre a Natureza e o Espírito – garantida pelo Estado – condena, em toda a circunstância, o aborto.
Aqueles mesmos que querem ver no embrião uma “pessoa humana” reduzem-na, paradoxalmente, ao ser biológico, quando sabemos, hoje, graças, em parte a cientistas como Françoise Dolto – psicanalista, cristã, que admitia o aborto – que a “humanização” do recém-nascido e da criança é um processo que passa essencialmente pelo desejo e pela linguagem. Quando uma mulher manifesta o desejo de abortar, o médico deve ouvi-la, diz Dolto. Porque um ser que nasce só se torna humano quando “é o fruto de três desejos: o desejo consciente do acto sexual completo do pai, o desejo inconsciente da mãe, e, também, o desejo inconsciente de sobreviver desse embrião no qual uma vida humana tem origem”.
Esse desejo do embrião começa por ser biológico e só se torna humano quando é simbolizado pela linguagem, desejado expressamente pelo pai e pela mãe. Mas, em muitos contextos, cada vez mais frequentes, pela anestesia afectiva crescente que perturba as relações humanas e a sexualidade – tal não se produz: e a mãe, por isso, deseja abortar. Dolto mostra o que pode acontecer a uma criança obrigada a nascer quando não desejada, não “falada” na linguagem do desejo dela ser. “Criança órfã de pais simbólicos”, “frustrada do direito de todo o ser humano à alegria”, com um sem-número de patologias que vão até à psicose.
É também para que não haja crianças “impostas” e mutiladas no seu processo de humanização que o “sim” deve ganhar – para que acabe a vergonhosa criminalização da mulher que, tantas vezes culpabilizada, em sofrimento extremo, escolhe abortar.

nem um dedo para os aliviar

(Do contributo de José Mattoso, para o Sim no Referendo)

"Os padres e bispos que o fazem correm o risco de se parecer demasiado com aqueles de quem Jesus dizia: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os aliviar» (Mt.23.4). Em vez de se obcecarem na condenação seria melhor preocuparem-se com a misericórdia."

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

ou muito me engano

Ou, caso vença o “não” no referendo pela despenalização do aborto, ainda vamos assistir a alguns dos seus militantes a rasgar as vestes, com a mesma histeria hipócrita, porque o sistema político, os seus agentes e o mais elementar respeito pela regras do sistema democrático e do Estado de Direito, afinal não lhes permitem legislar a favor da despenalização do aborto, como tanto desejam.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

bairrismo breve

Manhã de Sincelo, algures na Guarda (Foto de Alexandrina Pinto)

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

a vida como ela é (3)

(…) Quase sou tentada a dizer que uma mulher percebe quando não se sente apta a levar avante uma gravidez. Vivia sozinha com a minha filha mais velha, não tinha uma relação estável, não iria criar laços com o pai da criança só porque ela existia. Naquele momento da minha vida assumir aquela gravidez não fazia qualquer sentido. (…) Recorri a uma parteira muito cuidadosa (…), mas na clandestinidade, claro. E esse fardo é tremendamente pesado. (…) Sabemos que a qualquer momento nos pode aparecer a polícia à frente. Se me perguntarem se tenho memórias negras desse dia muito objectivamente terei que responder que não. Tinha uma decisão assumidíssima. (…) As memórias negras que existem têm, tão somente, a ver com a revolta que sentia por não me reconhecerem o direito de fazer aquilo que tinha acabado de fazer sem aquele "ferro" de crime, por ter passado a ser, de acordo com a lei do meu país, uma criminosa.
(Relato completo em Eu Voto Sim!)

domingo, fevereiro 04, 2007

como um barco na noite

"O aborto é ilegal na Irlanda, punível com prisão perpétua. Apesar disso, 8.000 mulheres irlandesas viajam todos os anos até à Inglaterra para fazerem interrupções voluntárias da gravidez. Fazem esta viagem em segredo e regressam em silêncio. “Como um Barco na Noite” é um documentário de 30 minutos que acompanha a história de uma jovem pintora, de uma mãe trabalhadora com cinco filhos e de uma rapariga do campo. Ao longo do filme ouvimos testemunhos de assistentes sociais, médicos e conselheiros de planeamento familiar sobre a história legal e de mentalidades que obriga as mulheres a essa viagem."
(Like a Ship in the Night, de Melissa Thompson)
A distância que separa a Irlanda da Inglaterra e Portugal de Badajoz corresponde provavelmente à distância que separa os quadros legais irlandês e português em matéria de aborto. O caso irlandês permite ver até onde pode ir a imposição autoritária e repressiva de concepções morais e religiosas sobre os outros. Mas, na sua essência, o espírito de intolerância, desumanidade e invasão da intimidade e da consciência é basicamente o mesmo.

sábado, fevereiro 03, 2007

a intimidade dos outros

(Do artigo de Helena Matos - Público, 3 de Fevereiro de 2007)

"(...) Aquilo que divide o "sim" do "não" são concepções diferentes do nosso poder sobre a intimidade dos outros e em que medida o Estado lhes deve impor as opções que nós temos como certas. Até onde achamos que o Estado pode controlar não só ou nem tanto as nossas vidas mas sobretudo as dos outros? Esta é a questão que está omnipresente quando votarmos a 11 de Fevereiro.
O que está em causa neste referendo não é o que nós fazemos, faríamos ou fizemos quando e se confrontados com o dilema de interromper ou não uma gravidez. O que está em causa é o nosso direito a impor uma gravidez.
Pessoalmente não creio que qualquer um de nós tenha ou possa ter esse direito."

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

a vida como ela é (2)

(…) Apenas sabia que não era o momento. Estava a acabar de sair de uma relação em que era agredida intensamente fisicamente e psicologicamente, a acabar o curso. Sem qualquer condição psicológica para me estruturar e sem motivação para viver quanto mais ter um filho totalmente inesperado e que iria ligar-me para sempre a quem me maltratou duramente. (…) Chamem-me fraca, chamem o que quiserem mas que condições tinha eu para criar assim um filho de forma saudável e feliz? (…) Por muito que custe foi a decisão mais sensata dessa relação. (…) Eu tive sorte, tudo correu bem mas o local, a forma, a frieza marca de uma forma... Faz com que o acto seja mais marcante fisicamente do que psicologicamente. (…) Hoje claro que custa pensar nisso. Mas quando penso na forma que estaria a minha vida... não me arrependo.
(Relato completo em Eu Voto Sim!)

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

a mulher ali em pé

Então os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; e pondo-a no meio, disseram-lhe: “Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Ora, Moisés nos ordena na lei que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes?”. Isto diziam eles, tentando-o, para terem de que o acusar. Jesus, porém, inclinando-se, começou a escrever no chão com o dedo. Mas, como insistissem em perguntar-lhe, ergueu-se e disse-lhes: “Aquele dentre vós que está sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra.” E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra.
Quando ouviram isto foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, até os últimos; ficou só Jesus, e a mulher ali em pé. Então, erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém senão a mulher, perguntou-lhe: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?” Respondeu ela: “Ninguém, Senhor”. E disse-lhe Jesus: “Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar.
(Evangelho segundo São João, Capítulo 8, Versículos 1-11)