terça-feira, janeiro 30, 2007

a vida como ela é (1)

A minha irmã tinha 19 anos. Estava em Lisboa a estudar e sabia tudo o que se deve saber para nunca ter de vir a fazer um aborto. Ainda assim a cara dela não mentia: "Aconteceu...". (…) Foi numa garagem de uma vivenda mesmo perto da minha casa. Vimos sair a mãe e filha que lá estavam antes. A senhora foi pôr o jantar ao lume antes de nos “atender”. A minha irmã gritou. Tenho a certeza que lhe doeu mais a ela do que a mim, mas das palavras de agradecimento à senhora que o fez ficou a enorme certeza: isto não deveria ser assim. Não deveria ser pior do que já é. Não deveria ser escondido, escuro, criminoso (…)”.
(Relato completo em Eu Voto Sim!)

sexta-feira, janeiro 26, 2007

existência (II)

Chegava a perguntar-se se existiria, por mais que os outros lhe dirigissem a palavra e lhes respondesse. Por mais que olhasse para o porta-chaves com o seu nome e uma morada escrita à mão, e que os recibos da água, luz e taxa de saneamento afiançavam ser sua. Por mais que desse conta dos seus próprios passos e que os seus gestos permitissem movimentos ou fossem até capazes de alcançar coisas e pessoas. Era evidente que existia, obviamente que sim. Existia pelo menos para os outros. Uma espécie de existência suficiente. Existia pelo menos desse modo, para que ninguém pudesse ter sinais de que talvez assim não fosse. Existia assim, para poder reflectir sobre a questão com a tranquilidade de saber que os outros não tinham sombra de desconfiança a esse respeito.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

responsabilidade e consciência

(Do artigo de Vital Moreira - Público, 23 Janeiro 2007)

(…) Só a despenalização e a “desclandestinização” do aborto é que permitem decisões mais ponderadas e reflectidas, incluindo mediante aconselhamento médico e psicológico. Embora o referendo não verse sobre os procedimentos do aborto legal, nada impede e tudo aconselha que a lei venha a prever uma consulta prévia e um período de dilação da execução do aborto, como existe em alguns países. Aliás, o anúncio de tal propósito poderia ajudar o triunfo da despenalização no referendo, superando as hesitações daqueles que acham demasiado “liberal” o aborto realizado somente por decisão desacompanhada da mulher.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

vini reilly

(A night light)
No Porto, há dois anos atrás

terça-feira, janeiro 23, 2007

liberdade e humanismo

(Do artigo de Vital Moreira - Público, 23 Janeiro 2007)

"(...) A despenalização é a solução a um tempo mais liberal e mais humanista para a questão do aborto. Liberal - porque respeita a liberdade da mulher quanto à sua maternidade. Humanista - porque é o único antídoto contra as situações de miséria e humilhação que o aborto clandestino gera. Quando vemos tantos autoproclamados liberais nas hostes do "não", isso é a prova de que o seu liberalismo se limita à esfera dos negócios e da economia, parando à porta da liberdade pessoal. Quando vemos tanta gente invocar o "direito à vida" do embrião ou do feto para combater a despenalização, ficamos a saber que para eles vale mais impor gravidezes indesejadas (e futuros filhos não queridos) do que a defesa da liberdade, da autonomia e da felicidade das pessoas. Se algo deve ser desejado, devem ser os filhos!"

segunda-feira, janeiro 22, 2007

excomunhão (versão simplex)

Informam-se os interessados que o responsável pela Paróquia de Castelo de Vide, Cónego Tarcísio Alves, reconhece a excomunhão a todos “os cristãos que votarem "sim"” no próximo referendo, e a graça de impedimento em “participar na missa” aos que “se abstiverem de votar”, na medida em que “cometem um pecado mortal gravíssimo”.
Com base no Direito Canónico, o Processo de Excomunhão agora reconhecido pelo Cónego Tarcísio vem desburocratizar a tramitação actual via Vaticano, sem que seja prejudicada a possibilidade de “as mulheres que cometem aborto” não terem funeral religioso, ou a oportunidade de matar novamente Jesus Cristo, no caso de se tratar de “jovem grávida e não casada, não sendo o noivo o pai da criança”.
Esclarecimentos adicionais, nomeadamente sobre os horários das eucaristias onde se pode formalizar o pedido, inscrições e listas de espera, ou alojamento e restauração, e informações sobre os encargos com eventuais emolumentos pela lavra da Certidão de Excomunhão, devem ser dirigidos ao Cónego Tarcísio, contactando para o efeito os serviços da paróquia local.
Imagem: The Flock (2005)

quinta-feira, janeiro 18, 2007

o assistente social

"Conhece a vida dos seus utentes, sofre com eles, bate-se por eles. Expunha o cúmulo de carências à enfermeira com "clínica" montada na Maia. E ela até podia ganhar muito dinheiro com outras mulheres, com estas não. "Ela não dizia: "Ou dá x ou não faço". Perguntava: "O que pode dar?"". Davam o que podiam. E podiam pouco. Davam "o abono de família". Quando lhe chegou a carta da polícia, o assistente social inquietou-se, apressou a data marcada para prestar declarações. Perguntaram-lhe o que fazia na Junta de Freguesia de Campanhã, uma das mais problemáticas do Porto, e se já fora confrontado com pedidos de interrupção voluntária da gravidez.
A Polícia Judiciária (PJ) alugara uma casa em frente à da enfermeira, fotografara o entra-e-sai. A imagem de José António Pinto fora captada. Na agenda da enfermeira, o seu nome escrito na coluna dos que enviavam "clientes". E havia uma carta a agradecer
"a colaboração prestada" e "as facilidades dadas". Admitiu. Mediante "situações dramáticas", de pessoas que vivem "no limiar da dignidade humana", procurara a via legal. Fora "à maternidade, aos hospitais". Até alguém comentar: "És ingénuo, fala com a Maria do Céu". E ele expôs-lhe gravidezes indesejadas de raparigas muito jovens e solteiras, de toxicodependentes, de profissionais do sexo...
A PJ perguntou-lhe se fazia parte de uma rede de aborto, se angariava mulheres, se recebia dinheiro. Não obtinha proventos, nem caçava grávidas. Algumas mulheres, cujos nomes apareciam associados ao seu, explicaram que depositavam nele
"grande confiança". Tinham-lhe batido à porta "desesperadas" e ele levara-as à enfermeira e fora buscá-las.
Sabia que corria riscos. De um momento para outro, podia ser chantageado -
"Nenhuma o fez. Nenhuma disse: "Vou dizer que o filho é seu, que me obrigou a abortar, que me levou dinheiro"". De um momento para outro, podia ler num jornal: "Junta de freguesia patrocina abortos". Quis proclamar em tribunal: "Sou pela vida, sou pela vida em abundância, com afectividade e com papa para as crianças se desenvolverem de forma equilibrada e harmoniosa!". Mas o advogado travou-o.
A defesa alegaria que ele as levara a uma consulta. José António não esquece a
"solidariedade" nem a sua "imensa" vontade de, lida a sentença, se dirigir aos jornalistas para qualificar aquele julgamento de "hipócrita" e perguntar: "Onde estão os do "não" quando as mulheres pedem ajuda?" O advogado tornou a travá-lo. Contestaria a condenação a 45 dias de prisão substituída por multa.
Os magistrados vincaram, no acórdão, a sua
"sensibilidade", a forma como se envolvia na vida dos seus utentes. A defesa aproveitou a tese usada pelo procurador - existência de um conflito de deveres que exclui a ilicitude - para sustentar que o tribunal deveria atender às circunstâncias que motivaram a sua intervenção, "relevando o dramático conflito de deveres com que o mesmo se deparou na altura". Foi absolvido, como os outros quatro supostos cúmplices da enfermeira que recorreram.
"O aborto [a pedido] pode ser legalizado, mas a lei não vai alterar isso. Não se legalizam sentimentos". Já demoveu muitas mulheres. Aquelas não, aquelas "tinham esgotado todas as possibilidades - ou as ajudava ou iam meter agulhas em casa da vizinha". Quebra agora o silêncio. Não reclama apenas a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas. Reclama "educação sexual, planeamento familiar, condições para as pessoas terem outra atitude, viverem com dignidade". Reclama o fim do: "Precisa de fraldas? A colega da Segurança Social diz que não tem verbas, diz para a candidatar ao Rendimento Social de Inserção e a resposta demora. Precisa de infantário? Não há vaga. Precisa de uma casa digna? A câmara não faz desdobramentos. Precisa de um emprego? Vamos inscrevê-la [no centro de emprego] e aguardar.""
(Público, 18 Janeiro 2007)

terça-feira, janeiro 16, 2007

choque tecnológico

Aníbal Microsoft Wíndia, ou: Os efeitos colaterais do picante
(Na capa do Público de hoje)

sexta-feira, janeiro 12, 2007

num país a 12 de fevereiro

No dia 12 de Fevereiro gostava de acordar num país diferente. Num país que não humilha, não julga nem faz pender sobre as mulheres que decidem abortar a ameaça da pena de prisão. Num país que respeita a consciência e a decisão individual e que não é insensível nem indiferente às condições em que se realizam hoje muitos abortos clandestinos. Num país que sabe que ninguém deixa de abortar pelo facto de o aborto ser considerado crime. E que tem consciência que as razões que conduzem a essa difícil opção não passam por aí e se colocam num plano muito mais íntimo e profundo que o da intimidação penal. Num país que finalmente reconhece que a criminalização só serve a lógica do castigo, nunca a da dissuasão nem da pretérita reabilitação. E que sabe que a decisão de abortar já comporta suficiente angústia, sofrimento e violência.
A 12 de Fevereiro, independentemente do resultado do referendo, o aborto não deixa de existir nem deixa de constituir um profundo drama pessoal e social. Não está em discussão o fim do aborto. Está em discussão um país que reconhece a todas as mulheres, independentemente do seu estatuto social e situação económica, a igualdade de acesso a condições clínicas dignas para interromper, antes das 10 semanas, uma gravidez não desejada. Está em discussão um país que quer ou não fechar os olhos, que quer ou não continuar a ser hipócrita e farisaico. Um país diferente, que não faz da clandestinidade o manto para não ver, para não querer ver nem enfrentar o problema. Um país que deixa de fingir que o aborto não existe entre nós.

terça-feira, janeiro 09, 2007

babel worlds

Não tivesse havido Amores Perros, e Babel, de Alejandro González Iñárritu, seria um filme mais surpreendente. As histórias aparentemente desconexas enlaçam-se desta vez à escala do globo e não de uma metrópole, como na Cidade do México de Amores Perros.
Babel pode ser um retrato óbvio sobre a globalização e a comunicação (que justifica de resto o nome do filme), bem como uma perspectiva incisiva sobre a arrogância e esquizofrenia dos Estados Unidos em relação à emigração mexicana e ao terrorismo.
Mas Babel é também um exercício sobre a intencionalidade, o inesperado e – por paradoxal que pareça –, os micro universos locais e pessoais: o disparo fortuito na competição pela pontaria entre dois irmãos a pastorear nas montanhas de Marrocos (e que estão seguramente nas tintas para a geopolítica); a viagem de duas crianças norte-americanas ao novo e desconhecido mundo de um casamento no México (alheia a qualquer lógica de mobilidade migratória); ou a luta interior contra a solidão, entre o néon e o vazio, de uma jovem surda-muda em Tóquio (por mais adaptada ao meio envolvente que aparenta estar).
Babel vale sobretudo por isso. Pelo olhar sobre a intencionalidade e o local, na margem que tem de escape às leituras mais lineares e “globalizantes” do mundo, e apesar de não ser essa a sua maior ambição. Aliás, um dos traços mais interessantes de Iñarritu consiste no modo como consegue mapear os múltiplos sentidos das coisas, sem prejuízo da intenção em transmitir sempre algo claro e assumido.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

a morte mais fria

Para além das questões de ordem social, política e jurídica que se colocam relativamente à execução de Saddam Hussein, subsistem as razões de fundo e que exigem uma condenação da pena de morte que não continue a resumir-se a isso mesmo, a uma simples condenação. Saddam Hussein foi apenas um entre milhares de seres humanos que são anualmente condenados à pena capital (mais de 5 mil em 2005, segundo a Amnistia Internacional). E se a sua execução não deve ser assinalada como se tantas outras não tivessem tido lugar, constitui todavia um excelente exemplo para afirmar veementemente que em nenhuma circunstância a pena de morte se justifica.
Concordo com o Daniel Oliveira quando defende que o vídeo da execução de Saddam deve ser visto na íntegra. Para que se percebam exactamente os traços da crueldade e a frieza cínica que uma execução comporta. Porque a pena capital é a forma mais cruelmente premeditada, gélida e degradante de pôr fim à vida de alguém, colocando “o criminoso e o verdugo no mesmo plano moral”. E porque esvazia por completo qualquer sentido de dignidade e justiça, reduzindo a poeira as legítimas razões que possam justificar um julgamento.
No momento em que um ser humano é executado, por mais inomináveis que tenham sido os seus crimes e numerosas as suas vítimas (como era o caso de Saddam), a justiça perde qualquer legitimidade moral e converte-se na crueldade maior, insuperável pela ignomínia dos actos julgados. À pena de morte ninguém chama homicídio, mas a sua vigência é hoje uma das fronteiras que permite mais nitidamente traçar a separação entre governos civilizados e governos bárbaros.
Seria uma muito boa notícia que a próxima Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia ficasse associada a um momento de adopção internacional de medidas concretas e consequentes de condenação da pena de morte, dirigidas a todos os países onde esta ainda vigora.